O Brasil celebra 85 anos da instituição do voto feminino:
No Brasil, as mulheres só puderam se matricular em estabelecimentos de ensino em 1827. O direito a cursar uma faculdade foi adquirido somente cerca de 50 anos depois. As primeiras mulheres que ousaram dar esse passo rumo à sua autonomia e profissionalização foram socialmente segregadas.
O primeiro Código Civil brasileiro, aprovado em 1916, reafirmou muitas das discriminações contra a mulher. Com o casamento, a mulher perdia sua capacidade civil plena. Cabia ao marido a autorização para que ela pudesse trabalhar, realizar transações financeiras e fixar residência. Além disso, o Código Civil punia severamente a mulher vista como ‘desonesta’, considerava a não virgindade da mulher como motivo de anulação do casamento e permitia que a filha suspeita de ‘desonestidade’, isto é, manter relações sexuais fora do casamento, fosse deserdada. As mulheres casadas eram consideradas incapazes juridicamente, como as crianças, os portadores de deficiência mental, os mendigos e os índios.
Desde a formação da sociedade brasileira, as mulheres foram excluídas de todo e qualquer direito político. Por exemplo, a Carta Outorgada do Império (1824) e a primeira Constituição da República (1891) não lhes concederam o direito de votar e nem de serem votadas. Eram, portanto, consideradas cidadãs de segunda categoria. Uma realidade generalizada, pois, naquela época, as mulheres estavam excluídas dos seus direitos políticos na quase totalidade dos países do mundo.
A primeira feminista brasileira de que se tem notícia foi a potiguar Nísia Floresta (1809-1885). Ela se destacou como educadora, criando e dirigindo diversas escolas femininas no país. Considerava a educação o primeiro passo para a emancipação da mulher. A imprensa alternativa feminina, surgida em meados do século XIX, foi, o princípio do movimento de mulheres. Em 1852 a jornalista Juana Noronha fundou e dirigiu o primeiro jornal produzido por mulheres – o Jornal das Senhoras. No ano de 1873 a professora Francisca Motta Diniz fundou o jornal O sexo feminino, que se envolveu na grande campanha pela abolição da escravatura. Inúmeros outros jornais femininos surgiram e ajudaram a conscientizar as mulheres sobre o papel subalterno que lhes era destinado pela sociedade patriarcal. Esta breve postagem se concentrará na luta das mulheres brasileiras pelos seus direitos políticos.
Frontispício da primeira edição de “O Sexo Feminino” (1873).
O voto feminino foi um dos temas tratados pelos deputados que elaboraram a primeira Constituição Republicana (1891). Contudo, o texto final acabou não deixando clara a situação política da mulher. A argumentação da maioria dos opositores ao voto feminino sustentava a superioridade moral da mulher e, justamente por isso, ela seria incompatível com a política. A mulher deveria ser protegida pela sociedade deste mal. Deus e/ou a natureza havia reservado a ela outro papel, mais nobre, o de “rainha do lar”. Essa, por exemplo, era a visão dos positivistas.
Baseando-se na afirmação de que os constituintes não pretendiam proibir o voto feminino, pois entre os excluídos, não se encontrava nenhuma referência às mulheres. Ao longo dos anos, várias mulheres, em diversas regiões, tentaram se alistar como eleitoras. Em 1910, diante das constantes recusas, algumas delas fundaram o Partido Republicano Feminino, que ainda que pequeno, mostrava o grau de consciência e organização atingido pelas brasileiras no início do século passado.
Naquela mesma época, uma personagem importante para a luta feminina entrou em cena: Bertha Lutz, filha de um renomado cientista brasileiro, Adolfo Lutz, estudou em Paris onde entrou em contato com as ideias feministas que fervilhavam em solo europeu. De volta ao Brasil, em 1918, imediatamente envolveu-se na luta pelo voto feminino. Devido a sua condição financeira, pertencente à elite econômica do país, em 1919, foi indicada pelo governo brasileiro para participar da reunião do Conselho Feminino da Organização Internacional do Trabalho. Ela também representou o país na I Conferência Pan-Americana da Mulher, realizada em abril de 1922.
No mesmo ano, Bertha organizou o 1º Congresso Feminista e fundou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF). Esta foi a primeira entidade feminista brasileira com certa expressão interna e internacional. Entre os seus objetivos estavam: “assegurar à mulher os direitos políticos que a nossa constituição lhe confere” e “estreitar os laços de amizade com os demais países americanos a fim de garantir a manutenção perpétua da paz e da justiça no Hemisfério Ocidental”.
Outro nome feminino que se destacou no conturbado ano de 1922, foi o da combativa estudante Diva Nolf Nazário. Na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde estudava, defendeu, contra a maioria de seus pares, o simples direito de votar na eleição do diretório acadêmico. Consciente da situação inferior que se encontravam as mulheres, participou ativamente da fundação da Aliança Paulista pelo Sufrágio Universal, tendo sido sua secretária-geral.
Convencida da constitucionalidade do voto feminino, ela tentou se registrar como eleitora. Para isso, fez uma peregrinação por vários órgãos públicos. Chegou mesmo, depois de muita insistência, a conseguir um registro eleitoral provisório. Contudo, o parecer do juiz eleitoral foi-lhe desfavorável: “Entendem, por certo, a maioria dos nossos representantes que (…) não era ainda o momento de romper com as tradições do nosso direito, segundo as quais as palavras ‘cidadãos brasileiros’, empregadas nas leis eleitorais, designam sempre cidadãos do sexo masculino”, alegou o magistrado. Diva recorreu da decisão e seu pedido foi indeferido, o caso repercutiu nacionalmente e ganhou as páginas dos principais jornais. No ano seguinte, 1923, ela publicou “Voto Feminino e Feminismo”, no qual apresentou sua luta e as diversas posições existentes em relação ao sufrágio feminino, através de artigos publicados na imprensa daquela época.
A vitória eleitoral de Arthur Bernardes – um opositor ao voto feminino – nas eleições presidenciais de 1922, representou um duro golpe para os objetivos da FBPF. Eleito presidente em 1926, Washington Luís, incluiu em sua plataforma eleitoral o voto feminino, sua eleição animou as militantes feministas. Novamente foram apresentados projetos que garantiam o voto às mulheres e as Comissões de Justiça deram pareceres favoráveis a eles. As entidades femininas fizeram um abaixo-assinado com mais de duas mil assinaturas, em geral de mulheres de projeção social. Tudo indicava que, desta vez, a situação seria resolvida favoravelmente às mulheres.
Contudo, o projeto que instituía o voto feminino acabou não sendo votado, pois dois senadores apresentaram emendas desfigurando-o. Uma das emendas elevava a idade mínima para votar e ser eleita de 21 para 35 anos, para evitar a eleição de “meninas de pouca idade” para o Congresso. A outra emenda estabelecia o voto diferenciado para mulheres, em que se afirmava que podiam votar e ser votadas, “as mulheres diplomadas com títulos científicos e de professora, que não estiverem sob poder marital nem paterno”. A matéria voltou para a Comissão de Justiça que rejeitou as emendas. O projeto entrou na lista de espera para nova votação, que nunca ocorreria.
No entanto, a estrutura começara a romper. Juvenal Lamartine havia sido um dos senadores que mais defenderam a proposta do direito de voto para as mulheres e, por isso, foi apoiado por elas na sua campanha ao governo do Rio Grande do Norte. Antes mesmo de tomar posse, solicitou que fosse aprovada o projeto que estabelecia o voto feminino. Assim, as mulheres potiguares foram as primeiras a usufruir desse direito, bem como, as primeiras a assumir cargos no legislativo e executivo no país. Em 1928, Alzira Soriano foi eleita prefeita em Lajes, era fazendeira e obteve 60% dos votos, sendo a primeira mulher a assumir uma prefeitura na América Latina.
No ano de 1927, os votos femininos contabilizados na eleição para o Senado foram cassados pela Comissão de Poderes do Congresso Nacional. Segundo a Comissão, as mulheres poderiam votar apenas nas eleições para as Câmaras Municipais e Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, mas não nas eleições federais. A FBPF, em protesto, lançou um duro Manifesto à Nação. A direção da FBPF procurava tomar distância da política partidária – apesar de manter ligação com setores das oligarquias presentes no poder.
As operárias, embora tivessem grande atuação nas greves por melhores salários e condições de trabalho, tiveram pequena atuação na luta pelos direitos civis e políticos. Os anarquistas, força hegemônica até meados dos anos 1920, repudiavam a atuação política institucional e eram radicalmente contra a participação eleitoral. Por isso não se incorporaram na luta pelo sufrágio universal e feminino. O próprio Partido Comunista, criado em 1922, embora defendesse o voto feminino, ainda padecia de pouca inserção junto às mulheres, mesmo as trabalhadoras. Assim, a luta pelo sufrágio feminino foi travada fundamentalmente pelos setores de vanguarda da burguesia e da pequena burguesia urbana. Isso teve consequências na ideologia e nas formas de organização e de luta do movimento feminista brasileiro. Sem bases sociais populares, não se produziu uma forte corrente de esquerda como aconteceu em alguns países europeus.
A posse de Alzira Soriano, primeira prefeita eleita no Brasil (1928)
A primeira proposta de código eleitoral feita pelo governo provisório de Vargas ainda limitava o voto feminino, determinando que só poderiam votar as mulheres solteiras e viúvas acima de 21 anos e, as casadas, apenas com autorização dos maridos. Houve uma grande campanha unificada entre a FBPF e a ANM – Aliança Nacional de Mulheres, fundada por Nathércia Silveira ex- dirigente da FBPF – para derrubar tais restrições. As líderes feministas se encontraram pessoalmente com Vargas e tiveram então suas reivindicações atendidas.
O novo Código Eleitoral, promulgado em 1932, garantiu-lhes o direito de votar e serem votadas. Vargas ainda indicou Bertha e Nathércia, como representantes das mulheres brasileiras, para a comissão especial encarregada de elaborar a proposta de Constituição Federal que seria apreciada pelo Congresso – um fato inédito na história política brasileira. A Constituição de 1934 iria estabelecer sem ambiguidade, o direito de voto para as mulheres. Assim, o Brasil se tornou o quarto país das Américas a estabelecer o voto feminino, precedido pelo Canadá, Estados Unidos e Equador. A primeira mulher eleita para a Câmara dos Deputados foi a paulista Carlota Pereira de Queiróz. Formada em Medicina, era também uma representante destacada da elite paulistana.
Naquela conjuntura de crise havia crescido a influência da esquerda entre as mulheres. Como resultado, em 1934, foi fundada a União Feminina. Ela se integraria à Aliança Nacional Libertadora (ANL), que tinha participação de socialistas, comunistas e anti-imperialistas. Após a cassação desta entidade e do esmagamento do levante ocorrido em novembro de 1935, as principais dirigentes da União Feminina foram presas. Em seguida, a FBPF e demais entidades femininas sofreriam um duro golpe com a decretação do Estado Novo em novembro de 1937. Sem democracia o movimento feminino retrocederia. Apesar das limitações, pode-se afirmar que sem a ação decidida dessas mulheres não seria possível falar em democracia e cidadania no Brasil.
Carlota Pereira de Queirós, na Câmara dos Deputados, 1934
Texto adaptado do artigo de Augusto César Buonicore, disponível em: http://www.grabois.org.br/portal/especiais/152244-44658/2010-03-03/a-luta-de-libertacao-das-mulheres-e-o-socialismo